terça-feira, 24 de abril de 2012

Inventário dos Fazeres - Amendoas


 As celebrações e encenações religiosas na forma dos atos públicos no Brasil aparecem como tradição festiva, por assim dizer, herdada da tradição ibérico-cristã e que no contexto colonial aderiu a uma diversidade simbólica, traçando suas peculiaridades[1]. No presente, essas celebrações e encenações podem ser ressaltadas como expressões culturais nas quais, dentre outras formas, se manifesta a cultura religiosa deste país. Logo, conjuntos de elementos assumem significados específicos dentro do rito - como as representações litúrgicas - tendo um caráter funcional de comunicar o que é narrado. Porém, outros elementos são aderidos, sem o sentido inicial de representar algo dentro do rito, e sim no sentido de sustentação do mesmo e que, no decorrer do tempo, foram tomando significados para aqueles que participam ativamente da ostentação da celebração. A comida compartilhada pelos agentes da celebração por vezes aparece como parte integrante do rito no sentido de gratidão e retribuição à entidade divina, como também no sentido de gratificação – com grande valor simbólico – pelo trabalho no mesmo. As guloseimas e doces aparecem como esta forma de “dádiva” pela celebração ou encenação[2]. Segundo Célia Lucena:
 “Em todas as sociedades tradicionais as dádivas feitas sob forma de comida têm um papel de grande importância para estabelecer e reforçar laços de comensalidade.” [3]
Nas celebrações públicas no Brasil, como exemplo no Rio de Janeiro a partir do século XVII e de Vila Rica/Ouro Preto nos séculos seguintes[4], as balinhas de amêndoas ocupam esta dadivosa posição participando na vida coletiva destas cidades como símbolo da gratificação àqueles que atuam de alguma forma nas celebrações e encenações. Na Semana Santa – celebrada com grande atuação pública, contando com várias procissões e encenações dos fatos relevantes à pascoa cristã – a distribuição destas balinhas, prática herdada da tradição ibérico-cristã[5], permanece bem adaptada à esta celebração em Ouro Preto.

Em 1749 a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos – irmandade responsável por alguns atos litúrgicos e para-litúrgicos, como a Procissão de Passos e do Encontro, Sermões do Encontro e do Calvário, neste período – registrou no seu livro de Receitas e Despesas o gasto de 5 oitavas de ouro por 20 libras amêndoas para os anjos nos dias de procissão[6].
Mais de cem anos após, em abril de 1868, a mesma Irmandade pagou 55:000 (cinquenta e cinto mil réis) a Carlota Ferreira de Araújo por quatro arroubas e quatro libras de amêndoas[7] (figura 1).
Figura 1: Recibo, APMOP (Arquivo Público Municipal de Ouro Preto). Fundo: CMOP1; Série: Fazenda; Subsérie: Comprobatórios de Receita e despesas, datas limites: 1800-1879.
Atualmente a responsável por este fazer em Ouro Preto é Dona Nadir Angelina Correa Magalhães (figura 2), que revela em entrevista não só como se da a relação desta produção com as festas sacras, mas também como desenvolve este fazer no presente. Segundo a mesma, aprendeu a produzir as balinhas há mais de cinquenta anos a partir da experiência da sua irmã mais velha Eunice, e desde então passaram a produzir, em família, as balas de amêndoas, que são distribuídas durante as celebrações de semana santa. Mas a produção de amêndoas não ocorre como exclusividade desta celebração, Dona Nadir e suas irmãs Vera Lúcia e Eunice, como também suas ajudantes Maria Benância e Jandira, trabalham como doceiras e salgadeiras, e dizem que também “está sendo muito procurado (...) para evento, às vezes (...) pra um batizado (...) um casamento...” [8], logo também produzem as balinhas sob encomendas de celebrações familiares.
Figura 2 : Dona Nadir e Maria Benância

Quanto à relação com a semana santa, as balinhas são encomendadas pela paróquia que paga pelos ingredientes e mais pelo serviço prestado pelas doceiras. As balas são então distribuídas por representantes paroquiais às crianças que representam os apóstolos no “Lava-pés”, na quinta-feira santa; às figuras bíblicas que participam do Descendimento da Cruz, na sexta-feira santa; e na procissão da Ressurreição, no Domingo de Páscoa, além de anjinhos, corporações musicais e irmandades. Estes cartuchos são cones de papel que embrulham as porções de balinhas. Dona Nadir revela que os maiores cones, logo as maiores porções, são entregues às crianças que representam os apóstolos na Celebração do lava-Pés.  
Figura 3 : Temperos
As balinhas são produzidas, como demonstra Dona Nadir na entrevista, a partir da calda que é formada pelo açúcar levado ao fogo no tacho de cobre purificado no leite de vaca. Mantida a calda no tacho em alta temperatura, é então misturada de um jeito cuidadoso, enquanto vão sendo adicionados os outros ingredientes como chocolate-em-pó, amendoim ou coco; e os temperos erva-doce, cravo e canela (Figura 3).  Desta forma vão se formando torrões brancos e esféricos aglomerados ao coco ou amendoim, com os sabores e aromas dos temperos. Estes torrões são formados em diferentes tamanhos sendo: os farelos e partes menores, as médias e as maiores; que vão compor o cartucho respectivamente no fundo, no meio e na parte superior. Assim vão se adaptando melhor ao formato conífero do cartucho, dando sua consistência.
Para se chegar neste modo de fazer, foi preciso uma série de experiências por parte de D. Eunice, partindo de uma primeira tentativa em uma caçarola de ferro no fogão a lenha até a utilização dos tachos de cobre, que segundo Nadir “aguenta mais o calor” [9], aquecidos com brasas de carvão nas fornalhas que sustentam cada um deles (figura 4). Para elas não há um segredo, ou pelo menos a receita não é um segredo, dizem que só aprenderam a produzir as balinhas “colocando a mão na massa” [10], ou seja, submetendo à experiência a combinação dos ingredientes. Isto denota então o valor empírico do conhecimento que elas desenvolveram para chegar ao modo de fazer utilizado no presente.
Figura 4: Maria Benância mexendo as amêndoas no tacho de cobre sobre a fornalha.
Além da Semana Santa, em Ouro Preto, as amêndoas estão também presentes em outros festejos religiosos, como a festa de Santo Amaro, em Botafogo, e de São Gonçalo, em Amarantina. Há ainda no município outras doceiras que conhecem esse saber-fazer, sendo agentes diretos dessa prática reproduzida atualmente como marca dos eventos em que são, além de consumidos, integrados à celebração.


[1] TINHORÃO José R., As Festas no Brasil Colonial, São Paulo, Editora 34, 2000.
[2] LUCENA, Cecília T.; SOUZA, Maria Christina S. de,  Comida em festa: cozinheiros, doceiras e festeiros In: Práticas e representações. [Orgs.] LUCENA, Cecília T.; SOUZA, Maria Christina S. São Paulo; Humanitas/CERU, 2008. Pp. 177-196.
[3] Ibdem, p.183.
[4] SANTOS, Georgina. Páscoa, tempo de festa In: Revista de História da Biblioteca Nacional, Edição nº 43 - Abril de 2009, Rio de Janeiro; Biblioteca Nacional. P. 2 Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/pascoa-tempo-de-festa
[5] Idem.
[6] Livro de Receita e Despesas da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos, Arquivo Paróquia de Nossa Senhora do Pilar – Casa dos Contos (APSNP), microfilme, rolo 102/0001-0115, vol. 0393.
[7] Recibo, APMOP (Arquivo Público Municipal de Ouro Preto). Fundo: CMOP1; Série: Fazenda; Subsérie: Comprobatórios de Receita e despesas, datas limites: 1800-1879.
[8] Entrevista com Nadir Angelina Corrêa Magalhães 25 min. Ouro Preto; Alessandro Magno de Jesus e Vanessa Pereira Silva; 26/03/2012. Acervo da Prefeituira Municipal de Ouro Preto. Inventário de Proteção do Acervo Cultulral – ICMS 2013.
[9] Idem.
[10] Idem.